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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a Liberdade...(Albert Einstein)

Sei que é inútil tentar discutir os juízos de valores fundamentais. Se alguém aprova como meta, por exemplo, a eliminação da espécie humana da face da Terra, não se pode refutar esse ponto de vista em bases racionais. Se houver porém concordância quanto a certas metas e valores, é possível discutir racionalmente os meios pelos quais esses objetivos podem ser atingidos. Indiquemos, portanto, duas metas com que certamente estarão de acordo quase todos os que lêem estas linhas.

1. Os bens instrumentais que servem para preservar a vida e a saúde de todos os seres humanos devem ser produzidos mediante o menor esforço possível de todos.

2. A satisfação de necessidades físicas é por certo a precondição indispensável de uma existência satisfatória, mas em si mesma não é suficiente.

Para se realizar, os homens precisam ter também a possibilidade de desenvolver suas capacidades intelectuais artísticas sem limites restritivos, segundo suas características e aptidões pessoais. A primeira dessas duas metas exige a promoção de todo conhecimento referente às leis da natureza e dos processos sociais, isto é, a promoção de todo esforço científico. Pois o empreendimento científico é um todo natural, cujas partes se sustentam mutuamente de uma maneira que certamente ninguém pode prever. Entretanto, o progresso da ciência pressupõe a possibilidade de comunicação irrestrita de rodos os resultados e julgamentos - liberdade de expressão e ensino em todos os campos do esforço intelectual. Por liberdade, entendo condições sociais, tais que, a expressão de opiniões e afirmações sobre questões gerais e particulares do conhecimento não envolvam perigos ou graves desvantagens para seu autor. Essa liberdade de comunicação é indispensável para o desenvolvimento e a ampliação do conhecimento científico, aspecto de grande importância prática. Em primeiro lugar, ela deve ser assegurada por lei. Mas as leis por si mesmas não podem assegurar a liberdade de expressão; para que todo homem possa expor suas idéias sem ser punido, deve haver um espírito de tolerância em toda a população. Tal ideal de liberdade externa jamais poderá ser plenamente atingido, mas deve ser incansavelmente perseguido para que o pensamento científico e o pensamento filosófico, e criativo em geral, possam avançar tanto quanto possível. Para que a segunda meta, isto é, a possibilidade de desenvolvimento espiritual de todos os indivíduos, possa ser assegurada, é necessário um segundo tipo de liberdade externa. O homem não deve ser obrigado a trabalhar para suprir as necessidades da vida numa intensidade tal que não lhe restem tempo nem forças para as atividades pessoais. Sem este segundo tipo de liberdade externa, a liberdade de expressão é inútil para ele. Avanços na tecnologia tornariam possível esse tipo de liberdade, se o problema de uma divisão justa do trabalho fosse resolvido. O desenvolvimento da ciência e das atividades criativas do espírito em geral exige ainda outro tipo de liberdade, que pode ser caracterizado como liberdade interna. Trata-se daquela liberdade de espírito que consiste na independência do pensamento em face das restrições de preconceitos autoritários e sociais, bem como, da "rotinização" e do hábito irrefletidos em geral. Essa liberdade interna é um raro dom da natureza e uma valiosa meta para o indivíduo. No entanto, a comunidade pode fazer muito para favorecer essa conquista, pelo menos, deixando de interferir no desenvolvimento. As escolas, por exemplo, podem interferir no desenvolvimento da liberdade interna mediante influências autoritárias e a imposição de cargas espirituais aos jovens excessivas; por outro lado, as escolas podem favorecer essa liberdade, incentivando o pensamento independente. Só quando a liberdade externa e interna são constantes e conscienciosamente perseguidas há possibilidade de desenvolvimento e aperfeiçoamento espiritual e, portanto, de aprimorar a vida externa e interna do homem.
                                                                                                                                       (Albert Einstein)

Ciência e Religião

Parte I

Durante o século passado e em parte do que o precedeu, a existência de um conflito insolúvel entre conhecimento e crença foi amplamente sustentada. Prevalecia entre mentes avançadas a opinião de que chegara a hora de substituir, cada vez mais, a crença pelo conhecimento; toda crença que não se fundasse ela própria em conhecimento era superstição e, como tal, devia ser combatida. Segundo essa concepção, a função exclusiva da educação seria abrir caminho para o pensamento e o conhecimento, devendo a escola, como o órgão por excelência para a educação do povo, servir exclusivamente a esse fim. É provável que raramente, ou mesmo nunca, possamos encontrar o ponto de vista racionalista expresso com tanta crueza; pois todo homem sensível veria de imediato o quanto essa formulação é tendenciosa. Mas é conveniente formular uma tese de maneira nua e crua quando se quer aclarar a própria mente com relação a sua natureza. É verdade que a experiência e o pensamento claro são a melhor maneira de fundamentar as convicções. Quanto a isto, podemos concordar irrestritamente com o racionalista extremado. O ponto fraco dessa concepção, contudo, e que as convicções necessárias e determinantes para nossa conduta e nossos juízos não podem ser encontradas unicamente nessa sólida via cientifica. Pois o método cientifico não nos pode ensinar outra coisa além do modo como os fatos se relacionam e são condicionados uns pelos outros. A aspiração a esse conhecimento objetivo está entre as mais elevadas de que o homem e capaz, e certamente ninguém pode suspeitar que eu deseje subestimar as realizações e os heróicos esforços do homem nessa esfera. É igualmente claro, no entanto, que o conhecimento do que é, não abre diretamente a porta para o que deve ser. Podemos ter o mais claro e completo conhecimento do que é, sem contudo sermos capazes de deduzir disso qual deveria ser a meta de nossas aspirações humanas. O conhecimento objetivo nos fornece poderosos instrumentos para atingir certos fins, mas a meta final em si é a mesma, e o desejo de atingi-la devem emanar de outra fonte. E é praticamente desnecessário defender a idéia de que nossa existência e nossa atividade só adquirem 'sentido' mediante o estabelecimento de uma meta como essa e dos valores correspondentes. O conhecimento da verdade como tal é maravilhoso, mas é tão pouco capaz de servir de guia que não consegue provar sequer a justificação e o valor da aspiração a esse mesmo conhecimento da verdade. Aqui defrontamos, portanto, com os limites da concepção puramente racional de nossa existência. Mas não se deve presumir que o pensamento inteligente não possa desempenhar nenhum papel na formação da meta e de juízos éticos. Quando alguém se dá conta de que certo meio seria útil para a consecução de um fim, isto faz com que o próprio meio se torne um fim. A inteligência elucida para nós a inter-relação entre meios e fins. O mero pensamento não pode, contudo, nos dar uma consciência dos fins últimos e fundamentais. Elucidar esses fins e valores fundamentais é engastá-los firmemente na vida emocional do indivíduo; parece-me, precisamente, a mais importante função que a religião tem a desempenhar na vida social do homem. E se alguém pergunta de onde provém a autoridade desses fins fundamentais, já que eles não podem ser formulados e justificados puramente pela razão, só há uma resposta: eles existem numa sociedade saudável na forma de tradições vigorosas, que agem sobre a conduta, as aspirações e os juízos dos indivíduos; eles existem, isto é, vivem dentro dela, sem que seja preciso encontrar justificação para sua existência. Nascem, não através da demonstração, mas da revelação, por meio de personalidades excepcionais. Não se deve tentar justificá-los, mas antes, sentir, simples e claramente, sua natureza. Os mais elevados princípios para nossas aspirações e juízos nos são dados pela tradição religiosa judáico-cristã. Trata-se de uma meta muito elevada, que, com nossos parcos poderes, só podemos atingir de maneira muito insatisfatória, mas que da um sólido fundamento a nossas aspirações e avaliações. Se quiséssemos tirar essa meta de sua forma religiosa e considerar apenas seu aspecto puramente humano, talvez pudéssemos formulá-la assim: desenvolvimento livre e responsável do indivíduo, de modo que ele possa por suas capacidades, com liberdade e alegria a serviço de toda a humanidade. Não há lugar nisso para a divinização de uma nação, de uma classe, nem muito menos de um indivíduo. Não somos todos filhos de um só pai, como se diz na linguagem religiosa? Na verdade, mesmo a divinização da humanidade, como totalidade abstrata, não estaria no espírito desse ideal. E somente ao indivíduo que é dada uma alma. E o 'sublime' destino do indivíduo é antes servir que comandar, ou impor-se de qualquer outra maneira. Se considerarmos mais a substância que a forma, poderemos ver também nestas palavras a expressão da postura democrática fundamental. Ao verdadeiro democrata e tão inviável idolatrar sua nação quanto ao homem religioso, no sentido que damos ao termo. Qual será então, em tudo isto, a função da educação e da escola? Elas devem ajudar o jovem a crescer num espírito tal que esses princípios fundamentais sejam para ele como o ar que respira. O mero ensino não pode fazer isso. Se mantemos esses princípios elevados claramente diante de nossos olhos, e os comparamos com a vida e o espírito de nosso tempo, revela-se flagrantemente que a própria humanidade civilizada encontra-se, neste momento, em grave perigo. Nos Estados totalitários, são os próprios governantes que se empenham hoje em destruir esse espírito de humanidade. Em lugares menos ameaçados, são o nacionalismo e a intolerância, bem com a opressão dos indivíduos por meios econômicos, que ameaçam sufocar essas tão preciosas tradições. A clareza da enormidade do perigo está se difundindo, no entanto, entre as pessoas que pensam, e há uma grande procura de meios que permitam enfrentar o perigo - meios no campo da política nacional e internacional, da legislação, da organização em geral. Esses esforços são, sem dúvida, extremamente necessários. Contudo, os antigos sabiam algo que parecemos ter esquecido. "Todos os meios mostram-se um instrumento grosseiro quando não tem atrás de si um espírito vivo". Se o desejo de alcançar a meta estiver vigorosamente vivo dentro de nós, porém, não nos faltarão forças para encontrar os meios de alcançar a meta e traduzi-la em atos.

Parte II

Não seria difícil chegar a um acordo quanto ao que entendemos por ciência. Ciência é o esforço secular de reunir, através do pensamento sistemático, os fenômenos perceptíveis deste mundo, numa associação tão completa quanto possível. Falando claramente, é a tentativa de reconstrução posterior da existência pelo processo da conceituação. Mas, quando pergunto a mim mesmo o que é a religião, a resposta não me ocorre tão facilmente. E, mesmo depois de encontrar uma resposta que possa me satisfazer num momento particular, continuo convencido de que nunca consigo, em nenhuma circunstância, criar um acordo, mesmo que muito limitado, entre todos os que refletem seriamente sobre essa questão. De início, portanto, em vez de perguntar o que é religião, eu preferiria indagar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dá a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser aquela que, tanto quanto lhe foi possível, libertou-se dos grilhões, de seus desejos egoístas e está preocupada com pensamentos, sentimentos e aspirações a que se apega em razão de seu valor suprapessoal. Parece-me que o que importa é a força desse conteúdo suprapessoal, e a profundidade da convicção na superioridade de seu significado, quer se faça ou não alguma tentativa de unir esse conteúdo com um Ser divino, pois, de outro modo, não poderíamos considerar Buda e Spinoza como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de não ter nenhuma dúvida quanto ao valor e eminência dos objetivos e metas suprapessoais que não exigem nem admitem fundamentação racional. Eles existem, tão necessária e corriqueiramente quanto ela própria. Nesse sentido, a religião é o antiquíssimo esforço da humanidade para atingir uma clara e completa consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessantemente seu efeito. Quando concebemos a religião e a ciência segundo estas definições, um conflito entre elas parece impossível. Pois a ciência pode apenas determinar o que é, não o que deve ser, está fora de seu domínio, todos os tipos de juízos de valor continuam sendo necessários. A religião, por outro lado, lida somente com avaliações do pensamento e da ação humanos: não lhe é lícito falar de fatos e das relações entre os fatos. Segundo esta interpretação, os famosos conflitos ocorridos entre religião e ciência no passado devem ser todos atribuídos a uma apreensão equivocada da situação descrita. Um conflito surge, por exemplo, quando uma comunidade religiosa insiste na absoluta veracidade de todos os relatos registrados na Bíblia. Isso significa uma intervenção da religião na esfera da ciência; é aí que se insere a luta da Igreja contra as doutrinas de Galileu e Darwin. Por outro lado, representantes da ciência tem constantemente tentado chegar a juízos fundamentais com respeito a valores e fins com base no método científico, pondo-se assim em oposição a religião. Todos esses conflitos nasceram de erros fatais. Ora, ainda que os âmbitos da religião e da ciência sejam em si claramente separados um do outro, existem entre os dois fortes relações recíprocas e dependências. Embora possa ser ela o que determina a meta, a religião aprendeu com a ciência, no sentido mais amplo, que meios poderão contribuir para que se alcancem as metas que ela estabeleceu. A ciência, porém, só pode ser criada por quem esteja plenamente imbuído da aspiração e verdade, e ao entendimento. A fonte desse sentimento, no entanto, brota na esfera da religião. A esta se liga também a fé na possibilidade de que as regulações válidas para o mundo da existência sejam racionais, isto é, compreensíveis à razão. Não posso conceber um autêntico cientista sem essa fé profunda. A situação pode ser expressa por uma imagem: a ciência sem religião e aleijada, a religião sem ciência e cega. Embora eu tenha afirmado acima que um conflito legítimo entre religião e ciência não pode existir verdadeiramente, devo fazer uma ressalva a esta afirmação, mais uma vez, num ponto essencial, com referencia ao conteúdo efetivo das religiões históricas. Esta ressalva tem a ver com o conceito de Deus. Durante o período juvenil da evolução espiritual da humanidade, a fantasia humana criou a sua própria imagem 'deuses' que, por seus atos de vontade, supostamente determinariam ou, pelo menos, influenciariam o mundo fenomênico. O homem procurava alterar a disposição desses deuses a seu próprio favor, por meio da magia e da prece. A idéia de Deus, nas religiões ensinadas atualmente, é uma sublimação dessa antiga concepção dos deuses. Seu caráter antropomórfico se revela, por exemplo, no fato de os homens recorrerem ao Ser Divino em preces, a suplicarem a realização de seus desejos. Certamente, ninguém negará que a idéia da existência de um Deus pessoal, onipotente, justo e todo-misericordioso é capaz de dar ao homem consolo, ajuda e orientação; e também, em virtude de sua simplicidade, acessível as mentes menos desenvolvidas. Por outro lado, porem, esta idéia traz em si aspectos vulneráveis e decisivos, que se fizeram sentir penosamente desde o início da história. Ou seja, se esse ser é onipotente, então tudo o que acontece, aí incluídos cada ação, cada pensamento, cada sentimento e aspiração do homem, é também obra Sua; nesse caso, como é possível pensar em responsabilizar o homem por seus atos e pensamentos perante esse Ser 'todo-poderoso'? Ao distribuir punições e recompensas, Ele estaria, até certo ponto, julgando a Si mesmo. Como conciliar isso com a bondade e a justiça a Ele atribuídas? A principal fonte dos conflitos atuais entre as esferas da religião e da ciência reside nesse conceito de um Deus pessoal. A ciência tem por objetivo estabelecer regras gerais que determinem a conexão recíproca de objetos e eventos no tempo e no espaço. A validade absolutamente geral dessas regras, ou leis da natureza, e algo que se pretende - mas não se prova. Trata-se sobretudo de um projeto, e a confiança na possibilidade de sua realização, por princípio, funda-se apenas em sucessos parciais. Seria difícil, porém, encontrar alguém que negasse esses sucessos parciais e os atribuísse a ilusão humana. O fato de sermos capazes, com base nessas leis, de predizer o comportamento temporal dos fenômenos de certos domínios, com grande precisão e certeza, está profundamente enraizado na consciência do homem moderno, ainda que possamos ter apreendido muito pouco do conteúdo dessas leis. Basta considerarmos que as trajetórias planetárias do sistema solar podem ser antecipadamente calculadas, com grande exatidão, com base num número limitado de leis simples. De maneira similar, embora não com a mesma precisão, é possível calcular antecipadamente o modo de funcionamento de um motor elétrico, de um sistema de transmissão ou de um aparelho de rádio, mesmo quando estamos lidando com uma invenção inédita. É bem verdade que, quando o número de fatores em jogo num complexo fenomenólogico é grande demais, o método científico nos decepciona na maioria dos casos. Basta pensarmos nas condições do tempo, cuja previsão, mesmo para alguns dias à frente, é impossível. Ninguém duvida, contudo, de que estamos diante de uma conexão causal cujos componentes causais nos são essencialmente conhecidos. As ocorrências nessa esfera estão fora do alcance da predição exata por causa da multiplicidade de fatores em ação, e não por alguma falta de ordem na natureza. Penetramos muito menos profundamente nas regularidades que prevalecem no âmbito das coisas vivas, mas o suficiente, de todo modo, para pelo menos perceber a existência de uma regra necessária. Basta pensarmos na ordem sistemática presente na hereditariedade e no efeito que provocam os venenos - como o álcool, por exemplo - no comportamento dos seres orgânicos. O que ainda falta aqui é uma compreensão de caráter profundamente geral das conexões, não um conhecimento da ordem enquanto tal. Quanto mais o homem esta imbuído da regularidade ordenada de todos os eventos, mais firme se torna sua convicção de que não sobra lugar, ao lado dessa regularidade ordenada, para causas de natureza diferente. Para ele, nem o domínio da vontade humana, nem o da vontade divina existirão como causa independente dos eventos naturais. Não há dúvida de que a doutrina de um Deus pessoal que interfere nos eventos naturais jamais poderia ser refratada, no sentido verdadeiro, pela ciência, pois essa doutrina pode sempre procurar refúgio nos campos em que o conhecimento científico ainda não foi capaz de se firmar. Estou convencido, porém, de que tal comportamento por parte dos representantes da religião seria não só indigno como desastroso. Pois uma doutrina que não é capaz de se sustentar à "plena luz", mas apenas na escuridão, está fadada a perder sua influência sobre a humanidade, com incalculável prejuízo para o progresso humano. Em sua luta pelo bem ético, os professores de religião precisam ter a envergadura para abrir mão da doutrina de um Deus pessoal, isto é, renunciar a fonte de medo e esperança que, no passado, concentrou um poder tão amplo nas mãos dos sacerdotes. Em seu ofício, terão de se valer daqueles forças que são capazes de cultivar o Bom, o Verdadeiro e o Belo na própria humanidade. Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa mais difícil, mas incomparavelmente mais valiosa. Quando tiverem realizado esse processo de depuração, os professores da religião certamente hão de reconhecer com alegria que a verdadeira religião ficou enobrecida e mais profunda graças ao conhecimento científico. Se um dos objetivos da religião é libertar a humanidade, tanto quanto possível, da servidão dos anseios, desejos e temores egocêntricos, o raciocínio científico pode ajudar a religião em mais um sentido. Embora seja verdade que a meta da ciência é descobrir regras que permitam associar e prever os fatos, essa não é sua única finalidade. Ela procura também reduzir as conexões descobertas ao menor número possível de elementos conceituais mutuamente independentes. E nessa busca da unificação racional do múltiplo que a ciência logra seus maiores êxitos, embora seja precisamente essa tentativa que a faz correr os maiores riscos de se tornar uma presa das ilusões. Mas todo aquele que experimentou intensamente os avanços bem-sucedidos feitos nesse domínio é movido por uma profunda reverência pela racionalidade que se manifesta na existência. Através da compreensão, ele conquista uma emancipação de amplas conseqüências dos grilhões das esperanças e desejos pessoais, atingindo assim uma atitude mental de humildade perante a grandeza da razão que se encarna na existência e que, em seus recônditos mais profundos, é inacessível ao homem. Essa atitude, contudo, parece-me ser religiosa, no mais elevado sentido da palavra. A meu ver, portanto, a ciência não só purifica o impulso religioso do entulho de seu antropomorfismo, como contribui para uma 'espiritualização' religiosa de nossa compreensão da vida. Quanto mais avança a evolução espiritual da humanidade, mais certo me parece que o caminho para a religiosidade genuína não passa pelo medo da vida, nem pelo medo da morte, ou pela fé cega, mas pelo esforço em busca do conhecimento racional. Neste sentido, acredito que o sacerdote, se quiser fazer jus a sua 'sublime' missão educacional, deve tornar-se um professor.

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"Ciência e Religião" (1939-1941) - Págs. 25 a 34. Einstein, Albert, 1870-1955 Título original: "Out of my later years." Escritos da Maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges - Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1994.    Buscando O Melhor Para Você...

Comunicação, Expressão, Iconografia...

Á informação, como já dissemos, é a condição de possibilidade da comunicação e, portanto, a matéria-prima do conhecimento. Já vimos como ela se coloca a meio caminho entre o totalmente distinto e o idêntico, como ela necessita de padrões mais ou menos consolidados para ser absorvida e, também, como ela se torna dependente dos sujeitos criativos, que são capazes de perceber, numa certa desordem, uma nova organização emergente que desloca objetos, pessoas e idéias.

Mas qual é, afinal, o meio ambiente da informação? Ela estaria apenas em nossas mentes ou se encontraria efetivamente no mundo que rodeia o sujeito que quer absorvê-la? Uma resposta definitiva a esta pergunta não é fácil. Mas podemos tentar pequenas respostas parciais que nos dêem algumas dicas. Sabemos que o conhecimento é algo bastante íntimo. Muitas vezes, sabemos algo e sentimos uma tremenda necessidade de contar para alguém, mesmo que essa pessoa não esteja interessada. Outras vezes, falamos com nossos próprios botões a respeito de um vizinho, de algo que se viu na televisão ou na escola. Por que fazemos isso se não há ninguém escutando? Não seria suficiente apenas pensar? A resposta é não.

Percebemos as coisas a nossa volta, como a chuva, por exemplo, ou observando-a cair ou sentindo-a molhar o nosso cabelo ou ouvindo os pingos que caem no chão quando estamos prestes a dormir em nossas camas. Um pensa- mento um pouco indefinido sobre todas estas percepções nos vêm à mente, mas isto não é o conhecimento final do evento Chuva. Então dizemos: “Está chovendo”, deste jeito consolidamos o fato de que chove lá fora.

Quando bebês, aprendemos a falar antes de consolidarmos nossas complexas teorias sobre a Lua, ou sobre o palhaço pendurado no alto do berço. Dizemos “Ága” (água), “Páa” (pai) ou “Mãa” (mãe), então um líquido que sacia a sede aparece, ou dois seres gigantes nos protegem e nos alimentam. Sentimos que existe algo de mágico nestas palavras. E todas elas começam com o som indefinido do choro. Depois, ampliamos um pouco mais nosso vocabulário com as palavras “Xixi”, “Auau” etc, e percebemos que elas variam muito pouco de pessoa para pessoa. Descobrimos que elas podem ser usadas como veículos daquelas coisas que nos acompanham desde muito cedo, a saber, os nossos desejos e frustrações.

Deste jeito, começamos exprimindo o desconforto da fome e do frio e acabamos discorrendo longamente acerca da condição humana. Houve alguma grande mudança em nossos seres daquele primeiro momento até este último? De fato, não muita. Houve um grande aumento na complexidade no uso dos signos que chamamos de palavras, também houve um aumento na capacidade de memorizá-las, assim como os seus significados que são, às vezes, bastante longos. No entanto, o desconforto da fome e do frio continuaram a ser expressos por meio desses signos, mesmo que de maneiras um tanto diferentes.

Portanto, começamos a nos expressar para tentar alterar as condições ambientais que nos rodeiam, de modo a torná-las favoráveis ao nosso estado de espírito atual. Em seguida, percebemos que este estado de espírito se complexi esperou ficou. Começamos a sentir raiva, amor, tédio, preguiça, angústia, pânico etc. Em alguns momentos, sentimos que as palavras não são suficientes, ou por demais lentas, para exprimir estas idéias e criamos outros símbolos que agilizam a absorção da informação ou a comunicação.

Estes símbolos, que também podemos chamar de ícones, garantem a transmissão de uma idéia uma vez que os sujeitos que os usam estejam familiarizados com o contexto em quem estejam inseridos. O contexto é o conjunto de pessoas, lugares, momentos e situações que fornecem conteúdo ou significado ao ícone (símbolo ou signo). Assim, por exemplo, para se entender o que diz uma placa do tipo: É preciso estar familiarizado, em primeiro lugar, com as regras de trânsito. Mas isto não é o suficiente, também é necessário que este ícone não apareça em lugares como em um beco sem saída ou em uma casinha de cachorro ou dentro de uma banheira.

Parte da resposta que queríamos já se anuncia. A informação é fruto de nossa capacidade de contextualizar os diferentes ícones que nos rodeiam, inserindo-os nos ambientes em que cada um deles faz sentido. O sentido de cada símbolo, a informação que ele sugere, depende da quantidade de informações prévias que o sujeito obteve em toda a sua vida. Provavelmente, quanto maior for a vida do sujeito, ou quanto maior for o número de suas experiências, também maior será sua capacidade de perceber sentidos, significados, conteúdos, também maior será sua capacidade de absorver mais informação e de se comunicar melhor.

Mas a informação está dentro ou fora de nós? Ela brota fora do sujeito, impregnando o ícone com uma porção de idéias? Vamos imaginar que o ícone é como uma ratoeira armada, toda a tensão da mola está prestes a disparar, mas a ratoeira não dispara sozinha. Quando um pequeno rato desavisado cheira o queijo e abocanha a refeição “grátis”, então é aí que a força armazenada pela mola avisa que aquela comida era mais cara do que pensava o pobre ratinho.

Igualmente, a placa de trânsito, ou a de ‘paz e amor’, ou a da ‘pomba da paz’, ou a das ‘olimpíadas’ não funcionam sem um sujeito que a observe. Contudo, toda a idéia está lá em potência, armazenada, esperando. Como a mola complexi-esperou nosso rato. O sujeito se aproxima e a observa. O sujeito é o rato. Ele ‘mexe no queijo’ quando associa a placa a muitos outros momentos, pessoas e situações em sua memória, quando ele a contextualiza. Se ele tiver ‘força’ (experiências o suficiente) para ‘mexer o queijo’, então a placa ‘dispara’ (faz sentido, é informativa).

Como se vê, parte da informação deve estar do lado de fora do sujeito, em potência, nos diversos signos que se espalham pelo mundo. Mas a informação só aparece de fato quando alguém interpreta estes signos e lhes confere significado. Então, parte dela também deve estar na capacidade de memorizar, na de perceber e na de associar. Todas estas habilidades são inerentes ao sujeito e não as encontramos por aí espalhadas pelo chão. Algumas vezes, os ícones são como ordens, como as placas de trânsito; outras vezes, são como idéias, como a cruz para os cristãos, a estrela de Davi para os judeus. Em alguns momentos, os ícones representam nações como as bandeiras dos países. Mas também podem apontar comportamentos como os de James Dean ou de Elvis Presley. Também podem indicar ideais de beleza, como as modelos nas passarelas. Há muitas formas e funções diferentes para os ícones, mas nossa maneira de os interpretar obedece sempre o mesmo padrão, a saber, o de observação e o de contextualização.

Próxima

O carneiro do pequeno príncipe

(...) Preciso de um carneiro. Desenha-me um carneiro.
Então eu desenhei.
Olhou atentamente e disse:
— Não! Esse já está muito doente.
Desenha outro.
Desenhei de novo.
Responder Voltar à questão Anterior
Meu amigo sorriu com indulgência:
— Bem se vê que isto não é um carneiro. É um bode...
Olha os chifres...
Fiz mais uma vez o desenho.
Mas ele foi recusado como os precedentes:
— Este aí é muito velho. Quero um carneiro que viva muito.
Então, perdendo a paciência, como tinha pressa de desmontar o motor, rabisquei o desenho ao lado.
E arrisquei:
— Esta é a caixa. O carneiro está dentro.
Mas fiquei surpreso de ver iluminar-se a face do meu pequeno juiz:
— Era assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse carneiro?
— Por quê?
— Porque é muito pequeno onde eu moro...
— Qualquer coisa chega. Eu te dei um carneirinho de nada!
Inclinou a cabeça sobre o desenho:
— Não é tão pequeno assim... Olha! Adormeceu... (...)
                                                                                         (Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe).

O espaço público e o privado...

O homem é um ser, a um só tempo, público e privado. Lembramos que já começamos a compreender um pouco melhor a existência do sujeito como aquele indivíduo que possui uma identidade particular e social. Também vimos que pode existir um grande organismo coletivo, que também possui sua própria identidade, feita das muitas identidades particulares dos elementos que o compõe. Percebemos que estes sujeitos, o coletivo e o particular, se integram e se influenciam mutuamente.

Mas ainda não ficou suficientemente claro quais seriam os limites destes dois sujeitos, ou seja, até que ponto a identidade que eu chamo de minha não é, na verdade, uma identidade coletiva. Em geral, nossas identidades particulares se fundem com as identidades dos grupos a que pertencemos - até o ponto de não sabermos mais se nosso coração obedece aos nossos desejos egoístas ou aos desejos da maioria. Mas há momentos especiais onde isto fica bastante claro. Estes momentos são aqueles em que o espírito de grupo, de equipe, de participação ou mesmo de solidão aparecem de maneira mais óbvia. Se torcemos por um time de futebol que não está indo muito bem no campeonato, então nem nos preocupamos em assistir aos jogos no estádio. Se encontramos algum outro torcedor do nosso time, nem chegamos a comentar a possibilidade de uma queda ainda maior do rendimento. Por outro lado, se em nosso time está tudo indo às mil maravilhas, então, procuramos com quem conversar, assistimos aos jogos pela TV com amigos e até chegamos a ir assistir, ao vivo, no Estádio.

Percebemos que existem situações que pedem um momento de solidão e outros que pedem a reunião para a troca de experiências. Podemos observar facilmente que cada um destes momentos requer locais para dar vazão aos nossos estados de espírito. No carnaval, por exemplo, raramente ficamos tristes ou sozinhos. Neste caso, gostamos de procurar espaços públicos onde haja uma confraternização de todos em torno do mesmo espírito de festa.

Contrariamente, algumas pessoas ficam tristes no Natal ou no seu próprio aniversário. Então, gostam de passear sozinhas ou ficar assistindo televisão até de madrugada. Seja passeando em meio à reflexão na rua, ou sem conversar com ninguém no escritório, esta pessoa está em busca de um espaço privado, onde ela esteja só consigo mesma e, deste jeito, ela encontre a resposta para a sua situação existencial como sujeito, a sua identidade. Assim, percebemos que algumas pessoas são mais extrovertidas do que outras. Algumas pessoas preferem viver em um espaço público, outras em um espaço privado.

A palavra “espaço” aqui deve ser entendida em um sentido psicológico. Ou seja, como a posição dos desejos e da identidade das pessoas em geral. Deste modo, podemos nos encontrar tremendamente sozinhos em meio a uma enorme multidão, ou podemos nos sentir agradavelmente acompanhados com nossa coleção de livros ou com nossa própria intimidade.

Mas também existe uma grande e interessante relação entre o que chamamos de espaço público e o espaço privado e os locais físicos propriamente ditos.

Tomemos o exemplo de um governante falando, por meio de jornalistas, para toda a nação. Este homem representa um sujeito coletivo, representa a identidade de um grupo de pessoas. Portanto ele se encontra num espaço público, mesmo que a entrevista seja na sala da sua casa. Agora, suponhamos que este homem esteja dentro de seu gabinete de trabalho com dois amigos mais íntimos, neste momento eles estão se lembrando de uma farra de quando eram jovens ou contando uma série de piadas pesadas. Nesta situação, este político se encontra num espaço privado e odiaria ser surpreendido por qualquer um que não pertença a este espaço, assim como seus dois amigos com quem brinca.

O exemplo da ilustração da próxima página traz os dois casos em que o espaço público (a entrevista) não se identifica com o local público (o gabinete), o mesmo acontecendo com o espaço privado (as brincadeiras) e o local privado (a sala da casa). Mas esta identidade também pode acontecer quando vamos torcer e agitar a bandeira do nosso time no estádio. Então, colocamos a camisa oficial e nos dirigimos até lá onde gritamos até ficarmos roucos. Depois de findo o jogo, nos dirigimos para a nossa casa, onde agimos naturalmente como sempre. O Espaço público (a torcida) se identifica com o loca público (o estádio), e o espaço privado (a nossa vida comum) com o local privado (a nossa casa).

Notamos um fenômeno também bastante interessante no que diz respeito ao espaço público e ao espaço privado quando comparamos as cidades grandes com as cidades pequenas ou com a vida no campo. Nas cidades grandes, a superpopulação, a vida acelerada pelos horários apertados, pelas distâncias, pelas vias expressas congestionadas na hora do rush, pelo café e elos cigarros consumidos em doses perigosa-mente altas, tornam bastante minguadas e doentes as nossas vidas particulares. Procuramos a paz em locadoras de vídeo, em poltronas isoladas de cinemas, em fundos de restaurantes e sempre se acaba

tendo que ir dormir para acordar cedo no dia seguinte para mais uma maratona de muitos contatos com os outros e poucos contatos consigo mesmo.

Este excesso de exposição pública compulsória, ônibus, trânsito, trabalho, lojas, escola, cinemas, teatros, ruas etc, fazem com que as pessoas sintam falta do espaço privado a que todos almejam em alguma dose. Na ausência de um local assim, as pessoas se introjetam, se tornam casmurras, buscam o refúgio privado dentro de si mesmas - que é só o que lhes restou de íntimo, valorizando isto como o seu bem mais precioso: os seus pensamentos, os seus desejos, os seus segredos, os seus mistérios, são todos guardados no impenetrável forte de seus corações.

Na margem oposta, a vida em pequenas cidades e a vida no campo oferecem muito pouco além da praça, da igreja e das calçadas das ruas nas noites quentes de verão. Ao contrário das cidades grandes, a exposição pública nestes locais fica deveras restrita. As curtas distâncias, o isolamento da roça e do sítio, o número restrito de semelhantes, de afinidades, de gostos, a falta de opção de lazer e de trabalho, tudo isto faz com que, dessa vez, as pessoas sintam falta do seu quinhão de espaço público.

Deste modo, os moradores de pequenas cidades e do campo compensam tentando transformar relações particulares em relações públicas. A conversa sobre a vida alheia se transforma numa espécie de mídia informal. Nas ruas, todos se cumprimentam como se ainda estivessem dentro de suas casas, como se todos fossem realmente conhecidos, amigos, parentes. Não é visto com bons olhos a casmurrice, a introjeção, a introspecção. Todos devem ser amigos, todos devem ser cordiais. Todos devem estar expostos. A falta de maiores espaços públicos torna todas as relações públicas.

O equilíbrio entre o espaço público e o privado é aquilo que equilibra, igualmente, as nossas intenções, vontades, sensações e emoções. É o que equilibra as nossas solidões e as nossas exposições. Próxima

A flor e a náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
(...)
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
(...)
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(...)
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e [lentamente
passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo
Cidadezinha Qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
                                                                       (Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética.)

Quantidade, Números, Cálculo, Ordem, Classes...

Já nos referimos ao meio em que realizamos nossas capacidades cognitivas tais como perceber, memorizar, comparar/separar, comunicar e interagir com outros sujeitos, todos eles realizando, também, a seu modo, cada uma dessas ações. Agora podemos nos dedicar a um outro meio muito importante, mas que não percebemos de maneira tão visível como percebemos a natureza. Trata-se do meio em que realizamos as operações mentais que terminam em ações no mundo.

Logo que começamos a aprender a ler, em nossos primeiros anos na escola, a professora ou o professor nos apresenta símbolos gráficos que irão, arranjados de certa maneira especial, substituir os sons que chamamos de palavras. Estes símbolos são as letras. Dizemos que as palavras escritas também são símbolos, pois servem para representar (simbolizar) as palavras faladas por meio das letras. Por sua vez, as palavras faladas também são símbolos, pois servem para representar, verbalmente, certas idéias que passam em nossas mentes.

A nossa conclusão é de que damos nomes para as idéias que temos. No entanto, nossas idéias são bem diversificadas. Deste modo, também serão bastante diversificados os símbolos que as irão nomear. Algumas vezes pensamos em cadeira e dizemos “cadeira”, outras vezes pensamos em mesa e dizemos “mesa”. Portanto, concordamos com símbolos diferentes para objetos diferentes. Isto acontece para que se previnam mal entendidos do tipo: um sujeito recebe alguns amigos para jantar e lhes pede que se sentem nas cadeiras, para a sua surpresa, cada um escolhe uma mesa, na casa, para se sentar.

Mas também temos idéias a respeito das qualidades dos objetos. Estas qualidades também recebem nomes como “grande”, “azul”, “pesado”, “amargo”, “quente”, “alto”, “volumoso”, “fedorento” etc. Quando penso e escrevo num papel “cadeira azul” e “mesa pesada”, não estou me referindo a qualquer cadeira nem a qualquer mesa, mas a uma classe especial de cadeira e a uma outra classe especial de mesa. Quais? Aquelas que respeitem os adjetivos azul e pesado respectivamente.

Além de pensar em objetos como mesa e cadeira e nas suas qualidades, também posso me referir, simbolicamente, a uma outra ordem de idéias: a quantidade. A quantidade obedece a um outro processo de classificação e ganham símbolos especiais, estes nomes, para as quantidades específicas: são os números. Deste modo, por exemplo, posso pensar em algumas cadeiras azuis e outras tantas mesas pesadas. Imediatamente represento objetos que não aparecem isoladamente, mas em grupos ou conjuntos.

Por meio dos nomes que indicam qualidades (os adjetivos) e os nomes que indicam quantidades (os numerais), começamos um simples e importante processo de comparação e separação. Se pedirmos para reunirem todas as carteiras quebradas da sala, será necessário, em primeiro lugar, sabermos a que objeto se refere o nome “carteira”. Uma vez separadas (ou agrupadas) todas as carteiras, então teremos que verificar, uma a uma, quais estão inteiras e quais estão quebradas. Obtemos dois grupos de carteiras: o conjunto das carteiras quebradas e o conjunto das carteiras inteiras.

Ao mesmo tempo em que separamos as carteiras quebradas das inteiras, estamos reunindo ou agrupando as carteiras em diferentes classes, as quebradas e as inteiras. Observamos que agrupar ou separar são duas maneiras diferentes de se enxergar o mesmo processo. Um sujeito que passa pode dizer que está vendo alguém separar as cadeiras quebradas; outro passante, observando a mesma operação, pode dizer que está vendo alguém agrupar as cadeiras inteiras. Ao processo de agrupar e separar podemos atribuir os nomes “Soma” e “Subtração”. Soma e subtração, portanto, são os nomes utilizados quando queremos sinalizar para cada um destes pontos de vista acerca das relações entre os muitos conjuntos de objetos que podemos montar no mundo. A ciência que cuida das relações possíveis entre as quantidades, a matemática, tem por fundamento a manipulação de conjuntos por meio dos processos de soma e de subtração.

Além disso, a matemática se utiliza de certas regras, chamadas de regras lógicas, das quais iremos tratar mais adiante. Estas regras lógicas limitam aquelas duas diferentes maneiras de encarar as relações que se pode construir entre as quantidades. Quando reunimos estas regras lógicas e as operações entre os conjuntos, com o objetivo de praticarmos uma ação no mundo, então dizemos que estamos calculando. Calcular, portanto, nada mais é que relacionar conjuntos de acordo com suas qualidades de modo a poder, posteriormente, nomeá-los.

Do mesmo modo, juntamos as letras para construir palavras e sentenças. No intuito de expressar idéias cada vez mais complexas, também juntamos os números em sentenças mais ou menos complicadas, com o objetivo de expressar uma outra gama de idéias. Mas muitas vezes queremos que essas idéias sejam expressas de maneira bastante geral, isto é, que valham para muitos casos e não para poucos.

Desta feita, construímos as fórmulas algébricas, nas quais aparecem letras que nomeiam classes de números. Por exemplo: ‘x + y = 1’, as letras ‘x’ e ‘y’ substituem quantidades específicas que, uma vez agrupadas, resultam no símbolo ‘1’, que nomeia a idéia de unidade.

Neste sentido, quando usamos os números para nomear objetos de acordo com certas quantidades e classes, estes números recebem o nome de cardinais: três cadeiras, quatro mesas e cinco elefantes rosas. Porém, também podemos utilizar os números como forma de classificar objetos de acordo com certas características, por exemplo: o primeiro elefante é rosa, o segundo elefante é azul, o terceiro elefante também é rosa, o quarto elefante nem é azul nem é rosa, mas quer amendoins, o quinto elefante deve estar escondido em algum lugar desta sala.

Por meio dos ordinais, ordenamos os objetos, segundo suas características, de modo a facilitar a operação de separação/agrupamento. Mas podemos quantificar e ordenar muitas outras coisas além de objetos como mesas, cadeiras e elefantes: “aquele rapaz teve três amores de televisão”; “ela jamais esquecerá o seu primeiro amor, ainda mais agora que já está no seu trigésimo oitavo casamento”, “a primeira parte do dia”, “faltam cinco minutos para acabar a aula, mas parece que faltam vinte”, “Cyrano de Bergerac tem um belo nariz de quinze centímetros de comprimento”.

O Pequeno Príncipe

XIII

O quarto planeta era o do homem de negócios. Estava tão ocupado que não levantou sequer a cabeça à chegada do príncipe.
— Bom dia, disse-lhe este. O seu cigarro está apagado.
— Três e dois são cinco. Cinco e sete, doze. Doze e três, quinze. Bom dia. Quinze e sete, vinte e dois. Vinte e dois e seis, vinte e oito. Não há tempo para acender de novo. Vinte e seis e cinco, trinta e um. Uf! São, pois, quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e dois mil, setecentos e trinta e um.
— Quinhentos milhões de quê?
— Hem? Ainda estás aqui? Quinhentos e um milhões de ... eu não sei mais... Tenho tanto trabalho. Sou um sujeito sério, não me preocupo com ninharias! Dois e cinco, sete...
— Quinhentos milhões de quê? Repetiu o principezinho, que nunca na sua vida renunciara a uma pergunta, uma vez que a tivesse feito. O homem de negócios levantou a cabeça:
— Há cinqüenta e quatro anos que habito este planeta e só fui incomodado três vezes. A primeira vez foi há vinte e dois anos, por um besouro caído não sei de onde. Fazia um barulho terrível, e cometi quatro erros de soma. A segunda foi há onze anos, por uma crise de reumatismo. Falta de exercício. Não tenho tempo para passeio. Sou um sujeito sério. A terceira... é esta! Eu dizia, portanto, quinhentos e um milhões...
— Milhões de quê?
O homem de negócios compreendeu que não havia esperança de paz:
— Milhões dessas coisinhas que se vêem às vezes no céu.
— Moscas?
— Não, não. Essas coisinhas que brilham.
— Abelhas?
— Também não. Essas coisinhas douradas que fazem sonhar os ociosos. Eu cá sou um sujeito sério. Não tenho tempo para divagações.
— Ah! Estrelas?
— Isso mesmo. Estrelas.
— E que fazes tu de quinhentos milhões de estrelas?
— Quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e duas mil, setecentos e trinta e uma. Eu sou um sujeito sério. Gosto de exatidão.
— E que fazes tu dessas estrelas?
— Que faço delas?
— Sim.
— Nada. Eu as possuo.
— Tu possuis as estrelas?
— Sim.
— Mas eu já vi um rei que...
— Os reis não possuem. Eles “reinam” sobre. É muito diferente.
— E de que te serve possuir as estrelas?
— Serve para ser rico.
— E para que te serve ser rico?
— Para comprar outras estrelas se alguém achar...

Ambiente, Sistema e Planejamento...

Recapitulando, notamos que tudo começa com nossa capacidade de perceber o mundo, ver, escutar, ouvir, tocar, experimentar das diversas maneiras que estão ao nosso alcance. Então, comparamos tudo, separamos e memorizamos, descobrimos formas e padrões, comunicamos e selecionamos informação útil para o nosso convívio em comum. Depois, sentimos que também existe a necessidade de modificarmos as coisas, trocá-las de lugar, colocá-las de cabeça para baixo, bagunçar um pouco a ordem vigente para que uma nova ordem possa se estabelecer e, com ela, promessas de um mundo diferente.

É preciso deixar claro, porém, que tudo isto se passa num meio e que este meio é afetado por nossa existência, assim como por qualquer outra. Os filósofos gostam de criar modos de explicação que sejam bastante gerais, isto é, que sirvam para muitas situações e não somente para casos especiais. Desse modo, quando um filósofo, ou um cientista, fala em meio, ou em ambiente, eles estão querendo dizer algo que não signifique tão somente a natureza à nossa volta, assim como a entendemos comumente, mas tudo aquilo que possa reunir, dentro de si, elementos que se afetam mutuamente.

É como se pensássemos em uma caixa com dezenas de bolinhas dentro dela. Se a agitarmos, as bolinhas lá dentro baterão umas contra as outras. Neste caso, a caixa é o ambiente das bolinhas. Assim, o Meio, ou o Ambiente, pode ser de muitos tamanhos diferentes e agrupar seres bem distintos em diversas escalas de ordem.

O ambiente da formiga é certamente o formigueiro e alguns metros quadrados em volta dele. Também podemos ter ambientes dentro de outros ambientes; no caso do formigueiro, este pode estar em nosso quintal que é, por exemplo, o ambiente de nosso cachorro que lá faz os seus buracos, mas é, também, uma parte do nosso próprio ambiente, constituindo um ambiente maior, que é a nossa casa.

Nossa casa está numa rua, que esta num bairro, o bairro está dentro de uma cidade, que se localiza em um determinado estado, dentro de um país, que faz parte de um continente etc. Poderíamos ir expandindo os ambientes até regiões intergalácticas e por aí em diante.

Mas é importante notar que a formiga não sabe nada de bairros e cidades, assim como nós também não sabemos nada de regiões intergalácticas. É preciso definir o verdadeiro ambiente, portanto, como aquela região física na qual efetivamente entramos em contato com outros seres e elementos para garantir a nossa sobrevivência.

Cada um possui um ambiente que é, ao mesmo tempo, articular e público. Por exemplo, eu vou à escola e ao trabalho, mas nunca fui ao estádio de futebol. O meu chefe do trabalho muito raramente perde um jogo do seu time no estádio, mas nunca foi à minha escola. Quando nos encontramos no serviço, ele me fala sobre o jogo e eu lhe falo sobre o que entendi ou não dos livros. Às vezes, o seu time perde, e ele vai trabalhar mal humorado, o que complica um pouco as coisas para mim. Outras vezes, sou eu que peço para tirar umas horas de folga para poder estudar. Ele é obrigado, então, a fazer hora extra e deixa de ir ao estádio. Acontece que ele dá carona para seus amigos sempre que vai ao estádio. Seus colegas ficam sem a carona nesses dias de prova e, depois, tentam tirar satisfações com ele. A escola é afetada pelo jogo mesmo sem eu ir até o estádio; por sua vez, o jogo é afetado pela escola mesmo sem meu chefe estudar muito.

O que temos é que os ambientes podem ser compartilhados e exclusivos ao mesmo tempo. Isto acontece porque estes ambientes podem estar dentro de um ambiente maior e fora de um outro. Assim, a escola, o escritório e o estádio encontram-se na cidade do Rio de Janeiro, de modo que fazem parte do mesmo ambiente. Porém, todos os ambientes de outras cidades, como São Paulo, por exemplo, estarão fora desse Meio. No entanto, São Paulo e Rio de Janeiro estão dentro do país que conhecemos pelo nome de Brasil.

Ambientes e Meios também podem ser conhecidos pelo nome de Sistema. A palavra “Sistema” é empregada quando queremos deixar claro que existem complexas relações entre os elementos dentro do meio. Além disso, um Sistema não precisa ser, necessariamente, um espaço físico, como é um ambiente. Podemos ter o “Sistema Financeiro”, formado por diversos bancos e clientes em muitos países, ou o “Sistema Judiciário”, formado por tribunais, ministérios, promotorias etc, ou os “Sistemas Ecológicos”, constituídos por nichos, habitats, climas, ciclos e assim por diante.

Nos sistemas ecológicos, ou ecosistemas, encontramos diversos ambientes cujos elementos encontram-se num alto grau de interconexão. Deste modo, insetos, bactérias, aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes e muitos outros seres coabitam em ambientes que são exclusivos e compartilhados a um só tempo, travando relações extremamente complexas.

Com o passar do tempo, notamos que a soma de todas essas complexas relações geram uma espécie de equilíbrio que aprendemos a denominar Equilíbrio Ecológico.Isto é, essas relações geram padrões mais ou menos estáveis, ou seja, formas ambientais que mudam de maneira lenta e gradual, de modo que seus elementos têm tempo para se adaptar a essas mudanças. Vemos, por exemplo, que muitos ratos, cobras, lagartos e insetos aprenderam a viver em desertos extrema-mente secos. Para isto acontecer precisaram de alguns milhares de anos de lenta evolução.

Como dissemos no começo desta aula, todos os seres afetam o meio em que vivem. Até meados do século XIX o ser humano vinha, há muito, afetando o ambiente sem maiores prejuízos para ele. Seu custo para o ambiente era baixo. Contudo, desde então, a nossa interação com o meio acelerou muito o seu ritmo, de modo que nosso custo para o sistema ecológico já não está mais sendo coberto por ele.

Máquinas à carvão, à óleo, à gasolina, bombas atômicas, usinas nucleares, lixos tóxicos e domésticos, esgotos em rios e mananciais, derrubada de florestas para agricultura e pecuária, minerações, derramamento de petróleo no mar, caçadas de animais em grande e pequena escala. Tudo isto tem desequilibrado muito o ecosistema. De tal forma que, uma vez que todos os elementos, dentro dele, se relacionam de maneira muitas vezes desconhecidas por nós, é impossível saber ao certo as verdadeiras conseqüências do que já fizemos até os dias de hoje.

O que sabemos verdadeiramente é que, uma vez destruído o ambiente em que vivemos, só nos restam duas saídas:
1ª) sair dele, ou
2ª) perecer com ele.

Uma vez que o ambiente em questão, ao final das análises, é compartilhado por todos sem exceção, sendo um único e o mesmo (a Terra) - e na medida em que as galáxias mais distantes vão continuar por muito tempo nessa condição –nos sobra apenas a segunda e a mais aterradora das opções.

Sistema ameaçado
Além da poluição atmosférica, nossa saúde também é ameaçada pela água e pelos alimentos, uma e outros contaminados por uma grande variedade de produtos químicos tóxicos. Nos Estados Unidos, aditivos alimentares sintéticos, pesticidas, agrotóxicos, plásticos e outros produtos químicos são comercializados numa proporção atualmente avaliada em mais de mil novos compostos químicos por ano. Assim, o envenenamento químico passa a fazer parte, cada vez mais, de nossa vida. Além disso, as ameaças à nossa saúde através da poluição do ar, da água e dos alimentos constituem meros efeitos diretos e óbvios da tecnologia humana sobre o meio ambiente natural. Efeitos menos óbvios, mas possivelmente muitíssimo mais perigosos, só recentemente foram reconhecidos, e ainda não foram compreendidos em toda a sua extensão. Contudo, tornou-se claro que nossa tecnologia está perturbando seriamente e pode até estar destruindo os sistemas ecológicos de que depende nossa existência.

                                                                                                          (Fritjof Capra, O ponto de mutação).
DEPÓSITO DE LIXO

30 bilhões de toneladas de lixo são despejadas anual mente no meio ambiente. São produzidos por ano 80 milhões de toneladas de plástico, material que não se decompõe na natureza. Há cinqüenta anos não chegava a 5 milhões de toneladas. Só o Brasil tem 100 milhões de pneus abandonados.

Crise Ecológica

Um breve olhar sobre o que poderia significar uma educação ambiental parece ser interessante para compreender um pouco melhor nosso momento histórico. O próprio predicado ambiental é esclarecedor e revela inúmeros problemas e constrangimentos conceituais. Como decorrência dessa predicação, uma das principais coisas que nos vêem à mente é que, se existe uma educação que é ambiental , deve existir, também, uma educação não-ambiental em relação à qual a educação ambiental poderia fazer referência e alcançar a sua legitimidade. Ora, isto é, no mínimo, muito estranho. Por que isso ocorre?

Como podemos ter uma educação não-ambiental se desde o dia de nosso nascimento até o dia de nossa morte vivemos em um ambiente? (...) Compreendi a própria necessidade de adicionar o predicado ambiental à educação. A educação ambiental surge, hoje, como uma necessidade quase inquestionável pelo simples fato de que não existe um ambiente na educação moderna. Tudo se passa como fôssemos educados e educássemos fora de um ambiente. (...) A adição do predicado ambiental que a educação se vê agora forçada a fazer explicita uma crise da cultura ocidental. A educação ambiental é, a meu ver, antes de mais nada, um sintoma desta crise. De um modo bastante geral e difuso, essa crise vem sendo abordada em vários campos do conhecimento e tem recebido o nome genérico de ‘crise ecológica’.

                                                                                               (Mauro Grün, Ética e Educação Ambiental).

A Trilha Para o Conhecimento, Investigação, Curiosidade, Surpresa, Postura Filosófica...

A natureza nos proveu com um corpo pequeno e fraco, mas com uma razoável inteligência. Essa inteligência vem garantindo a sobrevivência da nossa espécie já por um bom tempo. De que forma?

Com o desenvolvimento dos sentidos, da memória, da capacidade de comparar e separar aquilo que é semelhante e aquilo que é distinto e, finalmente, com a habilidade de se comunicar e selecionar informação, a raça humana conseguiu organizar-se em sociedades, grandes ou pequenas, para melhorar suas chances de realizar tarefas difíceis como as que envolvem a agricultura, a caça, a edificação de casas, a confecção de roupas, a manufatura de ferramentas e instrumentos, a construção de máquinas e a elaboração de teorias e modelos etc.

Todos estes elementos nos proporcionam uma enorme e perigosa vantagem com relação aos outros seres vivos do planeta. Perigosa, porque essa vantagem é tão grande que corremos o risco de, embriagados por ela, não perceber que podemos ser, nós mesmos, o alvo de nossos venenos, armas, máquinas etc. Mas, apesar desse perigo, a inteligência continua sendo a nossa arma de sobrevivência neste mundo. Como caracterizá-la então?

Pelo que notamos, não podemos definir a inteligência somente como a capacidade de perceber, memorizar, separar e comunicar. A inteligência deve ser algo ainda maior. A inteligência deve nos prover com a capacidade de perceber o que se esconde por trás das aparências temporais das coisas. A inteligência deve permitir que nós nos admiremos com nós mesmos!

Criamos padrões para facilitar a nossa vida. Padrões são formas que se repetem e que nos garantem uma certa estabilidade num mundo caótico. Esta estabilidade é o que nos garante aquele meio termo entre o distinto e o mesmo, para que brote a informação. Podemos notar padrões como os hábitos alimentares, as maneiras de vestir, a língua de cada país, as maneiras de pensar de cada época etc.

Sem estes padrões viveríamos num caos onde, a cada novo dia, tudo seria diferente do dia anterior. Não conseguiríamos saber o que comer, o que vestir, o que falar e nem mesmo o que pensar, pois tudo mudaria sempre. Uma vez que estes padrões, a seu tempo, se estabelecem, nos tranqüilizamos e já podemos ir dormir calmamente em nossas camas. Na medida em que sabemos, mais ou menos, o que nos espera na manhã seguinte.

Contudo, conforme os padrões sociais vão se solidificando e se estabilizando, fica muito fácil, para nós, mantermos as coisas sempre muito parecidas durante o passar do tempo. Mantemos o mesmo emprego, fazemos sempre o mesmo caminho para a escola, usamos os mesmos modelos de roupas, os mesmos tipos de sapatos, gostamos do nosso velho carro, não gostamos de comer comidas muito exóticas, não tentamos um novo amor, nem um novo penteado.

Nos poupamos das novidades e envelhecemos sem muitas surpresas. Simplesmente repetimos sempre a mesma coisa, todo dia, indefinidamente. Assim, pensamos que tudo estará bem. Tal forma de pensar e de agir é tão sedutora que muitas pessoas caem nessa armadilha e suas vidas se tornam bastante monótonas e arriscadas. Arriscadas porque elas não estão preparadas para mudanças bruscas no ambiente - como guerras, perder os empregos, crises econômicas, crises conjugais ou amorosas, acidentes com seqüelas etc.

Mas dissemos, há pouco, que a inteligência deve ser capaz de se admirar consigo mesma. Deste modo, definimos inteligência pela capacidade peculiar de nos mantermos vivos ainda que situações muito adversas nos cerquem. Portanto, surpreender-se com o que não é óbvio, isto é, com o que se esconde por trás de outras coisas, é tão necessário à vida quanto é se alimentar, se vestir e muitas outras coisas. Além de perceber, memorizar, comparar e comunicar, também precisamos nos espantar para sermos considerados seres inteligentes e criativos.

Para esse espanto acontecer, precisamos, em primeiro lugar, observar o óbvio e tentar enxergar para além dele. Se espantar com as coisas rotineiras, isto é, se admirar com o que nos cerca no dia-a-dia é o que permite uma melhor preparação para situações inusitadas, mas absolutamente possíveis. O tamanho de nossa criatividade, que é a capacidade de sobrevivermos de maneira não monótona, pode ser verificado na quantidade de vezes com que nos espantamos com o que chamamos de “comum” ou de “corriqueiro”.

Desta habilidade de se espantar com as coisas cotidianas surgem momentos mágicos e muito valiosos para toda a espécie humana, como é o caso dos momentos inventivos dos grandes cientistas ou daquelas horas inspiradas dos grandes artistas, como os compositores, os pintores, os poetas e os escultores. Por exemplo: tomemos um padrão simples, como uma chaleira. Alguém nos pede para fazer algo com ela.

Muito bem. Então, olho para ela e penso em um delicioso chá. Encho-a de água e preparo o meu chá. Se, por outro lado, pedíssemos o mesmo para um artista, como Hermeto Pascoal, por exemplo, ele talvez quisesse fazer algo mais original, menos óbvio do que chá com a chaleira.

Talvez, ele pegasse a chaleira e começasse a soprar em seu bico para fazer algum tipo de som. Pablo Picasso pintou diversas mulheres, e a cada novo quadro se podia perceber menos uma mulher e mais uma outra figura qualquer, retorcida, fragmentada, deslocada, reposta.

Ser original, ou criativo, portanto, é saber encontrar novas posições ou funções para objetos comuns, reinventando suas formas e utilidades. Contudo, isto só é possível na medida em que assumimos um ponto de vista novo, diferente, não usual. A adoção deste novo ponto de vista, por sua vez, só é possível quando nos espantamos e nos propomos perguntas do tipo: Mas por que isto é assim? Por que as coisas devem ser assim ou ter esta ou aquela função? Como poderia fazer diferente? Como seria um mundo diferente? Como viver uma vida diferente da que eu vivi até hoje? Como e por que isto ocorre desta maneira? Quando estas perguntas começam a aparecer com alguma freqüência em nossas mentes, é porque estamos adotando o ponto de vista daquele que não está satisfeito, daquele que pede uma explicação, daquele que quer saber o como e o porquê das coisas. Este ponto de vista é também conhecido como Ponto de Vista Crítico ou Ponto de Vista Filosófico.

Sem este ponto de vista crítico ou filosófico, muitas perguntas como estas não teriam sido formuladas em muitos momentos. Deste modo, muitas invenções, teorias, quadros, poesias, pinturas, músicas, esculturas não teriam existido. Se existe uma postura filosófica no sujeito que percebe as coisas comuns, então, existe um olhar crítico. Se existe um olhar crítico, então, há a percepção do novo. E, se o novo aparece, é porque as coisas estão mudando.

Mundo de Sofia:

Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais, outras, ainda, dedicam quase todo o seu tempo livre a uma determinada modalidade de esporte.

Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura também são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas diversos, como astronomia, a vida dos animais ou as novas descobertas da tecnologia.

Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico grudado na televisão assistindo a todas as transmissões de esporte, tenho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice. (...)

Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: calor. E, quando perguntarmos a alguém que se sente sozinho e desolado, então certa-mente a resposta será: a companhia de outras pessoas.

Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.

O Melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas: Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder estas perguntas? E, principalmente: como devemos viver? Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo. Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo. É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las.

                                                                                                           (Jostein Gaarder, O mundo de Sofia)
O que é "Comum"?

Naquela época nós sempre tínhamos em casa duas ou três galinhas ciscando no quintal. Você acha que a galinha é uma coisa comum? Bem, eu também achava. Mas isso foi antes de conhecer Mika. Imagine que você fosse um astronauta solitário atravessando o espaço sideral. Mesmo que você viajasse durante meia eternidade, só com muita sorte encontraria uma galinha — uma só que fosse!

Há bilhões de estrelas no universo. Uma ou outra pode ter um ou dois planetas girando à sua volta. Depois de viajar muitos e muitos anos, você poderia chegar a um planeta onde existisse vida. Mas mesmo num planeta com vida, as chances de encontrar uma galinha são mínimas. Seria mais provável você encontrar um ovo. Mas duvido muito que desse ovo saísse uma galinha.

É bem possível que não existam galinhas em nenhum outro lugar do universo exceto no nosso planeta Terra. E o universo é tão vasto que nem dá para imaginar! Sendo assim, como podemos dizer que a galinha é comum?

                                                                                              (Jostein Gaarder, Ei! Tem alguém aí?)

As Palavras e as Identidades Culturais...

Uma vez que os seres humanos iniciaram sua vida em grupo, descobriram necessidade da comunicação. Os graus de comunicação aumentam ou diminuem de acordo com a competência dos participantes deste processo, que se assemelha muito a um jogo. Na medida em que são bem sucedidos, isto é, na medida em que estes participantes do processo de comunicação (o Emissor e o Receptor) estabelecem contato por meio de sinais, se verifica o quanto de informação pode aparecer.

Podemos dizer que quanto mais informação houver no processo de comunicação maiores serão os benefícios mútuos que poderão advir. A informação que se apreende, por sua vez, é mais ou menos como uma habilidade de se perceber (apreender, compreender, perceber) algo que é um meio termo entre o absolutamente novo, isto é, o que nunca se viu antes, e a repetição absoluta, isto é, o idêntico.

Para que haja informação, é necessário, em primeiro lugar, um Sujeito que é capaz de perceber o sinal. Por sua vez, o sinal dever ser arranjado de tal maneira que nem seja algo que nunca se viu antes nem seja algo absolutamente monótono. As palavras cumprem este fim de maneira bastante satisfatória, pois não mudam muito de forma e, no entanto, podem ser arranjadas entre si de infinitas novas maneiras.

Sendo assim, os humanos descobriram que a linguagem, a articulação dos sinais com a finalidade da comunicação, encontra a sua forma quase que definitiva no discurso. Este é, de maneira simples, a ordenação das palavras de acordo com regras.

Conforme os grupos iam se organizando e se distinguindo cada vez mais uns dos outros, suas palavras, seu discurso e sua linguagem também iam se desenvolvendo e se distinguindo entre si.

As línguas naturais dos povos - como o russo, o grego, o japonês, o português, o francês, o alemão, o inglês - não se distinguem apenas por letras ou por palavras diferentes. Nem tampouco são meros conjuntos de regras gramaticais mais ou menos complicados.

Cada uma destas línguas, e centenas de outras, são discursos diferentes. Cada uma delas são formas distintas de organizar os sinais. Estas línguas nasceram há muito tempo, formando, em torno de si, enormes grupos de pessoas no ato de comunicar.

Quando se aprende uma nova língua não se aprende apenas os nomes das coisas e das ações. Nem somente as regras para usar este ou aquele nome, esta ou aquela ação. Quando se aprende uma nova língua, deve-se ter em mente um novo tipo de pensamento, de organização cultural, de época. Deve-se ter em mente as tradições desse povo, seus hábitos, suas roupas, suas constituições físicas, suas leis, suas cidades, enfim, sua história.

A língua se forma junto com o povo. Muitas vezes, a língua confunde-se com o próprio povo. No Brasil, notamos isto nos famosos regionalismos, nos quais palavras e expressões inteiras são conhecidas somente em um ponto específico do território. É também muito fácil notarmos como a língua se confunde com a maneira de pensar de um determinado conjunto de pessoas quando dirigimos nossa atenção para os sotaques.

Jamais confundiríamos, por exemplo, o sotaque de alguém que viveu sua vida inteira no Rio Grande do Sul com o sotaque de alguém que nasceu em Pernambuco. Estes dois Estados brasileiros não estão separados apenas pela distância geográfica, de um para o outro tudo muda: os hábitos, as roupas, as comidas típicas, as festas etc. A língua, portanto, traduz verbalmente todas estas tradições e configura, ela mesma, uma enorme parcela desta identidade: mesmo assim, estes dois povos, o pernambucano e o gaúcho, se identificam na língua portuguesa. Colocados juntos, numa conversa, possivelmente, muita in-formação poderia brotar. Provavelmente, mais do que se colocássemos apenas dois gaúchos juntos, ou apenas dois pernambucanos, para conversar. A informação está neste intervalo entre o diferente e o mesmo.

De maneira mais radical podemos perceber isto nos países Europeus que possuem uma tradição histórica mais antiga que a nossa, que é oriunda, principalmente, da colonização portuguesa e da vinda dos escravos negros da África. Nestes países, principalmente os da Europa Oriental, existem pequenos povos que possuem raízes étnicas diferentes, ou seja, possuem origens, línguas e formações culturais distintas e que, mesmo assim, foram obrigados a se identificarem uns com os outros por motivos de organização política ditatorial.

Este é o caso da antiga Iugoslávia. País no qual povos como os Croatas e os Sérvios tiveram que abdicar de sua identidade cultural em prol de uma união nacional fictícia. O resultado foi uma reação violenta, culminando numa guerra com milhares de mortos. Os mesmos eventos violentos vêm ocorrendo há tempos na África, cujo território foi dominado e arbitrariamente dividido entre países como a Inglaterra, a França e a Alemanha. Assim, tribos, historicamente inimigas, foram obrigadas, mais uma vez, a viverem juntas e, de novo, as reações violentas. Também a China vem dominando o Tibet desde meados do século XX.

O Brasil também teve alguns encontros compulsórios de diferentes etnias, como os europeus, os indígenas e os africanos. E por causa disso muitos conflitos violentos tiveram vez no Brasil. A cultura indígena, seus cultos, suas tradições, sua culinária, sua língua, foram quase que totalmente suprimidos. O mesmo não aconteceu com o povo africano, que conseguiu, a duras penas, marcar presença na cultura brasileira por meio da religião e da língua.

A língua portuguesa, no Brasil, é fruto desta múltipla interação entre povos diferentes. Elementos de nossa cultura, portanto, como o futebol, a música, a religião, a culinária, o vestuário e a própria língua demonstram, no dia-a-dia, a grande quantidade de informação surgida desta mistura entre o diferente e o mesmo. Contudo, para que esta informação se concretize de fato, ainda continua sendo necessário um sujeito que perceba estes sinais na natureza.

“A religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes diante da morte, a guerra, o trabalho, as ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e étnicas, tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro.”
Os gregos, sob o ponto de vista racial, constituíam um produto híbrido. Alguns dos mais remotos habitantes da Grécia parecem ter falado uma língua muito diferente do grego. (...) Por vezes, certos pensadores baseiam em motivos raciais as realizações gregas ulteriores ou estabelecem o contraste entre as qualidades inatas da disciplina dórica e da versatilidade jônica. Isto, na melhor das hipóteses, traduz uma confusão entre raça e cultura; na pior, perversões como a do culto do homem nórdico.
A palavra ‘grego’ permite várias acepções, mas a expressão ‘civilização grega’ significa, vulgarmente, aquela civilização que começou na Idade do Ferro e atingiu o seu maior esplendor nos V e IV séculos a.C.. A nova civilização que surgiu nas terras gregas está na origem de todas as civilizações ocidentais modernas, mas para ela não foi ainda possível encontrar qualquer antepassado legítimo.

                                                                                                                            (R.M. Cook, Os Gregos)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Comunicação...

Nenhum ser humano está inteiramente sozinho no mundo. Ainda que procurássemos, a todo custo, nos distanciar das outras pessoas, não o conseguiríamos. O mundo em que vivemos hoje concretizou fortes relações entre os países, entre as escolas, entre as empresas, entre os povos. Isso se realizou de tal modo que tornou-se impensável, nos nossos dias, não trabalhar, ou não estudar, ou simplesmente se isolar das diversas maneiras de se integrar na sociedade.

Isto ocorreu, basicamente, porque desenvolvemos a capacidade de nos percebermos mais fortes desta maneira. A formação dos grupos organizados de pessoas propicia a geração de um novo organismo que é capaz de realizar tarefas que o indivíduo, em seu esforço isolado, não consegue. Este novo organismo, que aparece da união inteligente entre as pessoas, pode receber vários nomes: Família, Estado, Nação, Instituição, Clã, Sindicato, Irmandade etc.

Para que haja a união das pessoas em grupos de trabalho, de estudo, de lazer, de culto, é necessário, antes de tudo, um acordo mútuo, um pacto, que junte as vontades particulares numa única e grande vontade. Este pacto tem que estar manifesto, isto é, todos têm que tomar conhecimento de seus detalhes, de suas regras, de seus objetivos. Neste momento, a comunicação é imprescindível. Assim, se perguntássemos o que os seres humanos têm em comum com as abelhas, com as formigas ou mesmo com os cupins, poderíamos responder imediatamente dizendo que é a habilidade de se fazer entender por seus semelhantes, criando a possibilidade da organização destes em classes, escalas, hierarquias, graus, ordens etc.

Sem que haja uma ligação entre os indivíduos, a comunicação entre eles não seria possível ou, se fosse, o seria de maneira muito deficiente e não permitiria a extrema especialização e organização atingidas pelas sociedades, seja das abelhas, seja das formigas, seja dos humanos.

Toda comunicação começa com, pelo menos, dois sujeitos: um Emissor, ou aquele que emite uma mensagem, e um Receptor, ou aquele que se encarrega de captar a mensagem.

O Emissor deve ser hábil o bastante para realizar o ato de sinalizar (emitir sinais) para além de si mesmo, isto é, para o mundo à sua volta, seja falando, ou batendo com um ferro em outro, ou digitando, fazendo mímicas, colocando uma pedra em cima da outra, ou de um milhão de outras maneiras. Os sinais são, portanto, qualquer símbolo, signo ou regularidade que é deixada na natureza para servir de marca para ser interpretada.

E é aqui que começa o trabalho do Receptor sendo, talvez, o mais difícil deles. O Receptor deve, portanto, possuir a habilidade de perceber, memorizar e comparar estas marcas deixadas na natureza pelo Emissor. Destas três habilidades, a última (a comparação) é a que exige um esforço maior, pois envolve as duas primeiras. Ninguém seria capaz de comparar o que quer que fosse se não pudesse perceber as coisas para poder justapô-las, medi-las, contá-las, verificá-las. Também ninguém saberia fazer nada disso se não pudesse lembrar-se, nem mesmo, o que são os sinais.

O ato da comunicação, portanto, é um ato complexo. Envolve sempre mais de uma pessoa. E os papéis de Emissor e Receptor se invertem constantemente entre os sujeitos que se comunicam. Uma vez que o sinal é comparado pelo Receptor, ele gera um outro sinal, passando a ser ele mesmo, também, um Emissor. Por sua vez, aquele que antes ocupava o papel de Emissor, passa a exercer o papel de Receptor, interpretando o sinal recém emitido. Só quando este círculo entre o Emissor e o Receptor se fecha é que se pode dizer que houve o ato da comunicação.

A Informação, que é aquilo que mais se deseja em toda e qualquer comunicação, pode aparecer ou não, dependendo da boa execução da emissão os sinais e da tradução destes. Traduzir é, portanto, a ação de perceber, memorizar, comparar e emitir outro sinal que corresponda em algum sentido ao que foi recebido de início.

Toda comunicação passa por estágios que são, de alguma maneira, diferentes uns dos outros, mas estes estágios não têm suas fronteiras nitidamente separadas. Elas se superpõem.

Imitação

Temos um estágio inicial no qual o emissor e o receptor se relacionam copiando ou imitando reciprocamente os sinais emitidos, numa tentativa incipiente de memorização e comparação por meio da repetição.

Esta comparação por imitação gera pouca, ou quase nenhuma, tradução. Se aparecer a informação, neste caso particular de comunicação, esta terá um grau mínimo que é muito baixo. Por exemplo: o papagaio que repete as palavras de seu dono, ou a criança que se veste com as roupas dos pais.

Reprodução

Já num segundo momento, há a inserção de elementos novos no momento da tradução. Estes novos elementos tentam condensar, ou resumir, a idéia percebida; de tal modo que a tradução aparece como uma re-produção daquilo que foi emitido originariamente. Neste momento também existe uma cópia dos sinais, mas esta cópia apare-ce como que resumida, ou facilitada. No caso da reprodução, surge informação num grau mais elevado que no da imitação, pois o emissor e o receptor conse-guiram gerar uma tradução que não apenas repete os sinais originários, mas os modifica para alcançar um fim prático. Por exemplo: um livro que descreve um quadro de um pintor famoso, uma foto, uma mensagem em código, uma teoria científica.

Expressão

Chegamos ao terceiro e último momento, o da expressão, em que a comunicação exibe todo o seu poder. Ou seja, neste momento o Receptor se torna também um Emissor de sinais totalmente distintos daqueles que ele recebeu. No entanto, estes sinais novos devem, ainda, guardar uma certa referência ao que foi sinalizado de início. Aqui a criatividade aparece de maneira bastante forte e a cópia deixa apenas uma leve lembrança. Por exemplo: cada um dos quadros que Picasso pintava em suas fases mais adiantadas era um tipo de resposta ao mundo que o cercava. Estes quadros eram absolutamente originais, isto é, se diferenciavam
muito dos objetos que eles retratavam, no entanto continuavam fazendo uma referência extremamente  inusitada a eles.

Comunicação:

Emissor /Sinal – Informação - Sinal /Receptor

As primeiras palavras

Não me ensinaram a falar [os mais velhos] apresentando-me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários movimentos do corpo, a fim de que atendessem a meus desejos; e também ao ver que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia.

Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. Mas deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio da mímica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se detém, ou recusa ou foge.

Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases diferentes. E, quando habituara minha boca a esses signos, dava expressão aos meus desejos.

Foi Assim que comecei a comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, e entrei a fazer parte do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo da autoridade de meus pais e obedecendo às pessoas mais velhas.

Sto. Agostinho, Confissões

Regras e Significado

Sto. Agostinho não fala de uma diferença entre espécies de palavras. Quem descreve o aprendizado da linguagem desse modo, pensa, pelo menos acredito, primeiramente em substantivos tais como “mesa”, “cadeira”, “pão”, em nomes de pessoas, e apenas em segundo lugar em nomes de certas atividades e qualidades, e nas restantes espécies de palavras como algo que se terminará por encontrar.

Pense agora no seguinte emprego da linguagem: mando alguém fazer compras. Dou-lhe um pedaço de papel, no qual estão os signos: ‘cinco maças vermelhas’. Ele leva o papel ao negociante; este abre o caixote sobre o qual encontram-se o signo ‘maças’; depois, procura numa tabela a palavra ‘vermelho’ e encontra frente a esta um modelo da cor; a seguir, enuncia a série dos numerais — suponha que a saiba de cor — até a palavra ‘cinco’ e a cada numeral [enunciado] tira do caixote uma maçã da cor do modelo. Assim, e de modo semelhante, opera-se com palavras. Mas como ele sabe onde e como procurar a palavra ‘vermelho’, e o que vai fazer com a palavra ‘cinco’?

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas